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Sem provas, brasileiros estão recebendo ‘multa’ de R$ 3 mil por pirataria

Era um dia normal na vida da estudante de comunicação Julia (nome fictício), 19, até o momento em que ela decidiu checar seus e-mails. “Quase cuspi meu café no computador”, relembra. Ela havia recebido uma notificação extra-judicial de um escritório brasileiro, representando os proprietários intelectuais de um filme que ela supostamente havia baixado – e agora teria de “ressarcir proporcionalmente os prejuízos”. 

“Não baixei [esse filme], mas mesmo que tivesse, não pagaria,” rebate Julia. Orientada por amigos, ela ignorou a mensagem, mas o medo ficou. “Não parei de usar programas para baixar filmes, mas agora uso um VPN [software que oculta o registro e a localização do computador] para me garantir.” Nem todo mundo, porém, tem o sangue frio da estudante. Muitos acreditam na notificação e, com medo das implicações legais, acabam pagando. A prática ficou conhecida na internet como “copyright troll”

“Não faço ideia de como chegaram até mim”, diz Roberto (nome fictício), 45, que trabalha com TI. “Ao menos um dos filmes da lista eu tinha baixado, mas eu sempre uso VPN para fazer downloads. Não sou um noobie [gíria para “novato” no universo geek], então devem ter usado algum método ilegal,” desabafa. Na verdade, tudo nessa operação transita numa zona cinzenta da legalidade.

Sem provas, só com convicção

Apesar da onda de relatos recentes, essas notificações têm sido distribuídas desde outubro de 2020. Na época, mais de 70 mil pessoas foram acionadas. Se cada uma aceitasse pagar a multa sugerida de R$ 3 mil, os autores teriam faturado R$ 210 milhões. “Alguém viu uma oportunidade de fazer um lucro fácil, que ainda não havia sido explorada, e decidiu tentar”, afirmou, na época, via declaração por escrito, o Partido Pirata Brasileiro, organização focada na liberdade e proteção da privacidade na Internet (mas que não é um partido político oficialmente).

A recomendação é uma só: “Ignore as mensagens, não faça o que eles pedem, não ceda, não pague, não caia no jogo psicológico”, afirma o PPB em seu site. Paulo Rená, professor e pesquisador especializado em direito digital, concorda. “Não é seguro atender a tais pedidos, feitos sem prova de titularidade legítima de direitos, e mesmo sem a prova efetiva de que os filmes foram baixados”, assegura.

Culpa no cartório? “A conduta em questão é muito bem caracterizada com o nome troll, porque é um abuso estratégico, um comportamento ameaçador que visa causar terror”, acrescenta Rená. “Troll” é uma gíria da internet para usuários anônimos com comportamento agressivo. O problema, no Brasil, está na outra metade no nome: “copyright”, termo em inglês para direito de propriedade intelectual sobre uma obra artística.

“A lei brasileira de direitos autorais é de 1998. Ou seja, está desatualizada,não fala sobre a Internet nem menciona especificamente downloads”, diz Raquel Saraiva, fundadora do Instituto de Pesquisa de Direito e Tecnologia do Recife. Ao invés disso, a lei se refere à “reprodução” — como na cópia e armazenamento de obras. André Houang, pesquisador do InternetLab e coordenador da seção de direitos autorais da Creative Commons Brasil, afirma que o Congresso tem discutido atualizar a Lei de Direitos Autorais. Porém, estas ações parecem ser um teste para ver “como as autoridades e o público reagirão, e depois propor determinadas mudanças à lei em seus interesses”.

De qualquer jeito, baixar filme ainda é ilegal, correto? “O uso de um trabalho intelectual sem a permissão do detentor dos direitos é ilegal, mas, quando não tem fins lucrativos, geralmente não se transforma em uma ação judicial”, diz Omar Kaminski, advogado especializado em internet, novas tecnologias e direitos autorais. Os esforços geralmente se concentram contra quem lucra com os downloads ilegais, por meio de anúncios nos websites onde estão disponíveis ou cobrando pelo acesso ao material protegido.

Dados ilegais? Numa reviravolta digna de Hollywood, quem pode estar infringindo a lei por acessar algo que não é seu são os escritórios de advocacia. Afinal, como eles obtiveram os dados de quem supostamente baixou os filmes? Eles não deveriam estar protegidos pela Lei Geral de Proteção de Dados, de 2018? Na carta enviada aos acusados, o escritório Kasznar Leonardos afirma que eles haviam sido rastreados porque os arquivos baixados continham um recurso antipirataria chamado GuardaLey Infringement Detection System, desenvolvido pela Bunting Digital Forensics, uma consultoria de exames forenses digitais. 

Porém não há nenhuma menção a esse recurso no site da Bunting. E GuardaLey, na verdade, é uma outra empresa, sediada no Reino Unido. A Tilt, a Kasznar se limitou a enviar uma nota, via assessoria de imprensa: “Kasznar Leonardos Advogados informa que presta assessoria jurídica a seus clientes e mantém dever de confidencialidade em relação às informações solicitadas. No mais, reitera que o uso de torrent para realizar o download e o compartilhamento não autorizados de obras intelectuais são condutas que violam direitos autorais, sujeito a penalidades previstas na legislação brasileira.”

Para Yasodara Córdova, ativista e pesquisadora sobre privacidade no Centro Ash para Governança Democrática e Inovação, em Harvard, a explicação de como o escritório obteve os dados não é convincente. “Não temos como acessar o código forense e as provas. Não temos a capacidade de analisar se houve fraude” explica. “Eles podem simplesmente ter rastreado algum blog que compartilha torrents e foram atrás de quem os acessou”.

Segundo o PPB, o escritório de advocacia processou a operadora de internet Claro SA, exigindo que a empresa fornecesse informações pessoais relacionadas a IPs (o “endereço” individual de cada computador). Em nota conjunta, o Instituto de Defesa do Consumidor, o Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife e outras organizações criticaram a empresa de telefonia por facilitar o acesso a dados de usuários, em desrespeito à LGPD.

Consultada por Tilt, a Claro alega que “cumpriu ordem judicial do Tribunal de Justiça de SP, nos termos da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet), que obriga o provedor responsável pela guarda a disponibilizar informações solicitadas mediante ordem judicial. Portanto, a operadora forneceu única e exclusivamente ao TJSP as informações determinadas, que ficam então sob responsabilidade da Justiça.” Ainda assim, para Kaminski, o método está sujeito a falhas.

“Tenho visto muitos erros de transcrição em petições e mandatos. Você só precisa errar um algarismo do IP para pegar a pessoa errada. Imagine a polícia batendo em sua porta com um mandado alegando que você é um divulgador de pornografia envolvendo menores de idade, porque eles pegaram o IP errado”, afirma. Filmes visados As cartas parecem focar principalmente em filmes de ação recentes, como Rambo: Até o Fim (2019), Hellboy (2019) e Invasão ao Serviço Secreto (2019).

Foi esse último que rendeu uma notificação para Mario (nome fictício), profissional de marketing que nunca viu o filme ou sequer costuma baixar torrents. “Não tenho o hábito. O que eu fiz foi acessar sites como o Popcorn Time, que transmite torrents”, explicou. “No início me assustou um pouco, porque é uma carta de um escritório de advocacia. Depois, fiquei mais curioso. Hoje em dia lidamos com tantas mensagens e e-mails falsos que já estamos meio que preparados para tudo”, disse.

No caso dele, o escritório foi o Márcio Gonçalves Advogados. Assim como a Kasznar, o escritório não retornou pedidos de entrevista feitos por Tilt. Segundo um porta-voz do Partido Pirata Brasileiro, em muitos casos o assédio se perpetua por um bom período, inclusive com renegociações do valor da multa.

“Eles pedem os mesmos R$ 3 mil, mas se a pessoa não cede, o escritório tenta forçar acordos, telefonando, enviando e-mails e até mensagens via WhatsApp, dando ‘prazos’ e ameaçando com uma ação judicial”, afirma. “Quando não recebem resposta, oferecem uma nova oportunidade. Ouvimos até que eles ofereceram acordos por R$ 500.”

Método descartado

Nos EUA, infrações individuais ao copyright raramente vão parar nos tribunais. O custo não compensa e, muitas vezes, a imagem dos detentores do direito é que fica arranhada – o grande estúdio hollywoodiano milionário perseguindo uma pessoa comum. Rená explica que perseguir usuários é um “tiro no pé, porque as pessoas ficariam a favor de quem baixa, porque a lei não tem amparo social. Ela existe, ela está vigente, mas ela não faz sentido.”

Houang concorda, apontando que “diversos estudos, inclusive um recente da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, têm mostrado que uma das melhores formas de se combater a pirataria é facilitando o acesso legal a mais conteúdos online,” e que a tática empregada pelos copyright trolls é “além de abusivo e retrógrado, ineficiente.” Caso você receba alguma notificação desse tipo, as recomendações dos especialistas são:

  • Não responda nem entre em contato
  • Consulte um advogado
  • Relate o ocorrido para o Partido Pirata Brasileiro copyright@partidopirata.org. 

Via Tilt

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Rodrigo Afonso
Rodrigo Afonso
Sim, eu que mando na bagaça aqui.

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